“Ouça, Virgínia, é preciso amar o inútil.
( Lygia Fagundes Telles em Ciranda de Pedra)
“Ouça, Virgínia, é preciso amar o inútil”. Fazer coisas sem esperar nada em troca. Atualmente estamos tão obcecados em uma busca por produtividade que subvertemos a lógica e transformamos quase tudo em utilidade. Aprendemos que se algo não pode dar um retorno palpável, não tem lógica perder tempo com aquilo.
A autora segue dizendo que é preciso:
“Criar pombos sem pensar em comê-los, plantar roseiras sem pensar em colher rosas, escrever sem pensar em publicar, fazer coisas assim, sem esperar nada em troca. A distância mais curta entre dois pontos pode ser a linha reta, mas é nos caminhos curvos que se encontram as melhores coisas. A música - acrescentou, detendo-se ao ouvir os sons do piano num exercício ingênuo - Este céu que nem promete chuva - prosseguiu. - Aquela estrelinha que está nascendo ali... Está vendo aquela estrelinha? Há milênios não tem feito nada, não guiou os reis magos, nem os pastores, nem os marinheiros perdidos. Não faz nada apenas brilha. Ninguém repara nela porque é uma estrela inútil. Pois é preciso amar o inútil porque no inútil está a beleza. No inútil também está Deus.”
Aos poucos nos desconectamos deste inútil que nada tem de dispensável, frívolo ou insignificante. Podemos erroneamente associar que qualquer coisa que fazemos precisa ser sempre rentável de alguma forma; ou perfeito; exibido, instagramável; ou que é perda de tempo fazer coisas ou viver experiências que não são consideras úteis, como descansar, por exemplo. Ou que precisamos estar consumindo - principalmente informação - para aproveitar bem o tempo.
Quando foi a última vez que você se entregou completamente a algo sem pensar no resultado, sem esperar aprovação, sem esperar sucesso, sem se cobrar de alguma forma? Quando foi a última vez que você experimentou aquele momento em que você ficou tão imerso que a passagem do tempo desapareceu? Você se sentiu revigorado, satisfeito. A isso o psicólogo croata Mihály Csíkszentmihályi chamou de estado de flow.
Ao ler a citação de Lygia ou os escritos de Bauman, ao constatar na prática clínica a enorme pressão em que as pessoas estão submetidas sob a lógica da produtividade, eu me pergunto quantas dessas experiências essenciais e inúteis temos deixado de viver. A natureza que deixamos de contemplar por ser perda de tempo. O texto que não escrevemos porque ninguém vai ler. O instrumento que não aprendemos a tocar porque não vamos nos apresentar em nenhum lugar. A foto que não tiramos porque não vamos postar. O quadro que não pintamos porque não ficará perfeito, porque não colocaremos para vender.
Somos seres criativos por natureza. E qualquer ato genuíno de criação não precisa de um motivo além de si mesmo. Não é apenas uma questão de fazer arte, mas de tocarmos algo que é profundamente humano e essencial para todos nós. Precisamos criar e nos expressarmos, sem objetivo prático, apenas como um processo vital.
Eu posso plantar roseiras esperando colher rosas, bem como posso plantar roseiras sem esperar colher suas flores. A diferença entre as duas atitudes é delicada e minuciosa. Quando instrumentalizo algo esperando uma recompensa, perco o maravilhamento. Mergulho em um egoísmo e egocentrismo cada vez mais profundo. Mato o amor se busco utilidade.
A produtividade é importante em determinados contextos e proporção; até mesmo necessária, eu diria. Mas quando extrapolamos e imbuímos tudo com ela, a vida se torna mesquinha e frustrante. Passamos a enxergar sob a ótica da escassez e do fracasso. Viver torna-se algo tão sério, engessado, complexo, uma corrida, um acúmulo… um fardo.
Urge decompor a ideia do amor e da vida como premissa de recompensa, como ferramenta de utilidade e produtividade. Se tudo precisa ser tão produtivo e útil, podemos ficar tentados a descartar e destruir. Aos poucos nos desumanizamos. O utilitarismo mata a criatividade, o amor, os sonhos, a vida.
Há incontáveis inutilidades que nos fazem mais humanos e mais vivos. O sentido da vida não é apenas para frente, mas também para fora: sair de si sem esperar em troca. Expressar-se. É preciso celebrar o ócio criativo, as miudezas, as sensações e os sentimentos, a potência dos afetos, a contemplação, o descanso, a fertilidade dos laços e dos vínculos, o criar, a arte, a transcendência, os detalhes. É preciso amar o inútil, o esquisito, o impensável, o impraticável, o que está fora de moda, o imperfeito, o que não faz sentido, o que não serve ao uso - ao menos aparentemente.
Quando foi a última vez que você fez algo pelo simples prazer de estar fazendo?
John William Godward — Dolce Far Niente (1904)
Refletir sobre a questão de amar o inútil me recordou o il dolce far niente dos italianos. É uma expressão que significa: a doçura de fazer nada. Pesquisando um pouco descobri que em Cabo Verde o mesmo conceito é vivenciado com o que chamam de “Morabeza”, que para eles significa aproveitar o tempo da vida com amabilidade e felicidade.
Em uma cultura regida pela produtividade e pela pressa, a doçura de fazer nada pode parecer à primeira vista um ode a preguiça ou descuido. Pode ser encarada de forma pejorativa em contraposição ao desordenado senso de ativismo, consumismo e multitarefa. Ledo engano. A filosofia italiana é um convite a uma vida mais significativa. Um apelo a desligar, a relaxar e saborear a vida. Aproveitar com qualidade. Um impulso que nos convida a abraçar o presente e a encontrar alegria na simplicidade. Encontrar o bem-estar na poesia do dia a dia. Construir artesanalmente o desgaste do tempo, investindo no que preenche.
Longe do ócio dissipador, que é o tempo gasto com futilidades e do tédio existencial que nasce da falta de sentido e excesso de tempo disponível. No doce não fazer nada temos o ócio criativo e restaurador e a vivência de momentos demorados, lentos, cheios de sentido e propósito. Um chamado a experimentar o suave passar do tempo em modo de sossego. Este tempo de descanso é terno. Um modo de aproveitar a vida e o verdadeiro tempo, aquele que sentimos que é nosso.
Tantas vezes podemos experimentar a sensação de uma vida em que apenas sobrevivemos e cumprimos tarefas, onde o tempo é aquilo que apenas perdemos, que nos escapa. Um tempo que não nos pertence, mas sim ao que esperam de nós. Ao que alguém dita que precisamos fazer. Obviamente viver em sociedade implica estar em certas funções de. Precisamos pagar boletos, cumprir obrigações no trabalho, responsabilidades na família. Mas se a vida se torna meramente um problema a ser resolvido, tarefas a serem cumpridas, então estou diante de um cataclisma interior onde certamente definharei com a perda de vitalidade.
O que te faz se sentir vivo? Eu ficarei surpresa se você me disser que são as coisas que você tem. Em geral, o que nos traz a sensação de estarmos vivendo são coisas sutis, simples e até mesmo inexplicáveis. O senso de dever cumprido, terminar uma tarefa, receber um beijo, fazer um carinho, sentir o sol tocando a pele, ter esperança, estar ao lado de quem amamos, brincar com o cachorro, montar quebra-cabeças. E inúmeras outras situações tão distintas, particulares quanto peculiares.
Talvez você se dê conta de que não sabe não fazer nada nem amar o inútil e que momentos assim te fazem sentir ansiedade, culpa e sensação de improdutividade. Isso é um sintoma comum. Por isso, te convido a pensar nas memórias mais preciosas e doces que você tem e a refletir se alguma delas está associada a estar na correria, agarrado ao celular, trabalhando sem parar. Uma vida com sentido, experimentada, sentida, enfim, vivida, contempla a poesia e a doçura de fazer nada. Abraça a potência de fazer escolhas por si mesmo, se dedicando ao que faz muito sentido no seu íntimo.
É preciso amar o inútil, Virgínia. Afinal o tempo anda só de ida, como dizia Manoel de Barros. Para terminar, deixo a indicação de um filme sobre o assunto deste texto: Perfect Days de Wim Wenders. Ele conta a história de um homem simples que trabalha limpando banheiros públicos na cidade de Tóquio. O filme mostra a sua rotina, os seus dias perfeitos. Hiramaya não é um homem bobo, romantizado, mas consciente e intencional. A sua vida pacata, difícil e porque não, monótona, é cheia de um sentido e beleza que ele mesmo constrói dia após dia. A frugalidade do protagonista nos recorda que somos humanos e, se pensarmos bem, não há nada de muito útil nisso.
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Esse foi um dos melhores textos que já li nesse aplicativo. Foi tão cirúrgico em minha vida que levarei cada palavra ao meu coração e guardarei a sete chaves. 💌
Me tornar pai trouxe ainda mais riqueza para minhas reflexões sobre o tempo. Antes da minha filha nascer eu me disciplinei a reservar uma hora do meu dia pra mim. Geralmente usada para assistir algo que eu goste, nas condições que eu gosto, prestando atenção aos detalhes. Ou jogar um joguinho no PC ouvindo música ou algum podcast.
Maitê nasceu. E ao mesmo tempo que eu nunca mais consegui essa hora pra mim, por dois dias seguidos, o convívio com ela me convida a amar o inútil. O tempo pra ela é sempre presente, esquece fácil os desapontamentos, não tem nenhum compromisso marcado na agenda. Escovar os dentes pra ela, é uma tarefa tão interessante, cheia de significado.
E assim o inútil se encontra com a mais importante das coisas. O que é mais necessário do que ficar fazendo "nada" ao lado da minha filha?